A tortura é parte do território

 

 


Naomi Klein
Los Angeles Time

7 de junho de 2005

Tradução Imediata

Preparem-se para uma enxurrada de novas fotos horripilantes de torturas. Na semana passada, um juiz federal ordenou que o Departamento de Defesa divulgasse dúzias de fotografias e videoteipes adicionais, mostrando o abuso de prisioneiros em Abu Ghraib.

As fotografias conseguirão aquilo que se tornou uma resposta previsível: o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld afirmará estar chocado e nos garantirá que medidas já estão sendo tomadas para prevenir que tais abusos voltem a acontecer. Mas, imaginem, por um momento, que os eventos seguissem um outro roteiro. Imaginem se Rumsfeld respondesse como o Coronel Mathieu, em "A Batalha de Argel", o famoso filme de Gillo Pontecorvo de 1965 sobre a tentativa da Frente de Liberação Nacional de liberar a Argélia da ocupação colonial francesa. Em uma das cenas mais importantes do filme, Mathieu se encontra numa situação familiar aos funcionários do governo Bush: ele está sendo encostado na parede por jornalistas sobre as alegações de que os pára-quedistas franceses estão torturando os prisioneiros argelinos.

Baseado no real comandante francês General Jacques Massus, Mathieu não nega o abuso, nem reivindica que aqueles responsáveis serão punidos. Ao invés disso, ele vira as mesas sobre os jornalistas escandalizados, a maioria dos quais trabalhava para jornais que apoiavam esmagadoramente a continuidade da ocupação francesa na Argélia. A tortura "não é o problema", diz ele calmamente. "O problema é que a FLN quer nos expulsar da Argélia, e nós queremos ficar… É a minha vez de fazer uma pergunta. A França deveria ficar na Argélia? Se a resposta for sim, então, devemos aceitar as conseqüências".

Sua observação, tão relevante no Iraque de hoje quanto foi na Argélia de 1957, é de que não há um modo amável e humanitário para se ocupar uma nação, contra a vontade de seu povo. Aqueles que apóiam tal ocupação, não têm o direito de se separarem moralmente da brutalidade que a empreitada exige.

Hoje, como naquela época, há somente dois modos de governar: com o consentimento ou com o medo.

A maioria dos iraquianos não consente com a ocupação militar indefinida sob a qual estão vivendo há mais de dois anos. No dia 30 de janeiro, uma nítida maioria votou para os partidos políticos que prometiam exigir um calendário de retirada dos EUA. Washington pode ter tido êxito em persuadir a classe política iraquiana de abandonar essa exigência, mas o fato é que as tropas dos EUA estão em solo iraquiano, num desafio em aberto contra os desejos da população.

Com a falta de consentimento, o atual regime EUA-Iraque se baseia sobretudo no medo, incluindo as táticas mais terrificantes de todas elas: os desaparecimentos, a detenção indefinida sem acusação e a tortura. E apesar das garantias oficiais, na realidade está tudo piorando. Há um ano, o Presidente Bush prometeu apagar a mancha de Abu Ghraib, demolindo a prisão. Mas houve uma mudança nos planos. Abu Ghraib e duas outras prisões gerenciadas pelos EUA no Iraque estão sendo expandidas, e um novo centro de detenção com a capacidade para duas mil pessoas está sendo construído, a um preço de US$ 50 milhões. Nos últimos sete meses, somente, a população carcerária dobrou, chegando a um número estupefacente de 11.350.

Pode ser que os militares dos EUA estejam tomando medidas enérgicas contra os abusos aos prisioneiros, mas a tortura no Iraque não está em declínio — ela foi, simplesmente, terceirizada. Em janeiro, o Human Rights Watch averiguou que a tortura nas prisões gerenciadas pelo Iraque (com supervisão dos EUA) e nos centros de detenção, era comum o uso do eletrochoque.

Um relatório interno da 1a Divisão da Cavalaria, obtido pelo Washington Post, afirma que o "eletrochoque e a asfixia" são "consistentemente utilizados para obter confissões" pela polícia e pelos soldados do Iraque. Tão às claras é o uso da tortura que foi promovido a um show de tevê: a cada noite, no canal de tevê Al Iraqiya – gerenciada por um contratante dos EUA – prisioneiros com os rostos inchados e manchas negras em volta dos olhos "confessam" seus crimes.

Rumsfeld afirma que a onda de suicídios recentes de homens-bomba no Iraque é "um sinal de desespero". Na realidade, é a proliferação da tortura sob a vigilância de Rumsfeld que é o verdadeiro sinal de pânico.

Na Argélia, os franceses usaram a tortura não porque eram sádicos, mas porque estavam lutando uma batalha que não poderiam ganhar, contra as forças de descolonização e o nacionalismo do Terceiro Mundo. No Iraque, o uso da tortura por Saddam Hussein aumentou imediatamente depois do levante xiita de 1991: quanto mais fraco se sentia no poder, tanto mais terrorizava o seu povo. Regimes indesejados, seja ditaduras domésticas seja ocupações estrangeiras, lançam mão da tortura precisamente porque são indesejados.

Quando o próximo lote de fotos de Abu Ghraib aparecerá, muitos americanos se sentirão moralmente ultrajados, e com razão. Mas talvez alguns oficiais corajosos terão aprendido a lição do Coronel Mathieu, e ousarão virar a mesa: os EUA devem permanecer no Iraque? Se a resposta for sim, então, devemos aceitar todas as conseqüências.

Naomi Klein esteve no Iraque paraefetuar reportagens para a revista Harper's. Ela é a autora de "No Logo" (Picador, 2002) e está escrevendo um livro sobre os modos como o capitalismo explora as catástrofes.

© 2005 LA Times

Published on Tuesday, June 7, 2005 by the Los Angeles Times

Torture's Part of the Territory

by Naomi Klein

 

Brace yourself for a flood of gruesome new torture snapshots. Last week, a federal judge ordered the Defense Department to release dozens of additional photographs and videotapes depicting prisoner abuse at Abu Ghraib.

The photographs will elicit what has become a predictable response: Secretary of Defense Donald Rumsfeld will claim to be shocked and will assure us that action is already being taken to prevent such abuses from happening again. But imagine, for a moment, if events followed a different script. Imagine if Rumsfeld responded like Col. Mathieu in "Battle of Algiers," Gillo Pontecorvo's famed 1965 film about the National Liberation Front's attempt to liberate Algeria from French colonial rule. In one of the film's key scenes, Mathieu finds himself in a situation familiar to top officials in the Bush administration: He is being grilled by a room filled with journalists about allegations that French paratroopers are torturing Algerian prisoners.

Based on real-life French commander Gen. Jacques Massus, Mathieu neither denies the abuse nor claims that those responsible will be punished. Instead, he flips the tables on the scandalized reporters, most of whom work for newspapers that overwhelmingly support France's continued occupation of Algeria. Torture "isn't the problem," he says calmly. "The problem is the FLN wants to throw us out of Algeria and we want to stay…. It's my turn to ask a question. Should France stay in Algeria? If your answer is still yes, then you must accept all the consequences."

His point, as relevant in Iraq today as it was in Algeria in 1957, is that there is no nice, humanitarian way to occupy a nation against the will of its people. Those who support such an occupation don't have the right to morally separate themselves from the brutality it requires.

Now, as then, there are only two ways to govern: with consent or with fear.

Most Iraqis do not consent to the open-ended military occupation they have been living under for more than two years. On Jan. 30, a clear majority voted for political parties promising to demand a timetable for U.S. withdrawal. Washington may have succeeded in persuading Iraq's political class to abandon that demand, but the fact remains that U.S. troops are on Iraqi soil in open defiance of the express wishes of the population.

Lacking consent, the current U.S.-Iraqi regime relies heavily on fear, including the most terrifying tactics of them all: disappearances, indefinite detention without charge and torture. And despite official reassurances, it's only getting worse. A year ago, President Bush pledged to erase the stain of Abu Ghraib by razing the prison to the ground. There has been a change of plans. Abu Ghraib and two other U.S.-run prisons in Iraq are being expanded, and a new 2,000-person detention facility is being built, with a price tag of $50 million. In the last seven months alone, the prison population has doubled to a staggering 11,350.

The U.S. military may indeed be cracking down on prisoner abuse, but torture in Iraq is not in decline – it has simply been outsourced. In January, Human Rights Watch found that torture within Iraqi-run (and U.S.-supervised) jails and detention facilities was "systematic," including the use of electroshock.

An internal report from the 1st Cavalry Division, obtained by the Washington Post, states that "electrical shock and choking" are "consistently used to achieve confessions" by Iraqi police and soldiers. So open is the use of torture that it has given rise to a hit television show: Every night on the TV station Al Iraqiya – run by a U.S. contractor – prisoners with swollen faces and black eyes "confess" to their crimes.

Rumsfeld claims that the wave of recent suicide bombings in Iraq is "a sign of desperation." In fact, it is the proliferation of torture under Rumsfeld's watch that is the true sign of panic.

In Algeria, the French used torture not because they were sadistic but because they were fighting a battle they could not win against the forces of decolonization and Third World nationalism. In Iraq, Saddam Hussein's use of torture surged immediately after the Shiite uprising in 1991: The weaker his hold on power, the more he terrorized his people. Unwanted regimes, whether domestic dictatorships or foreign occupations, rely on torture precisely because they are unwanted.

When the next batch of photographs from Abu Ghraib appear, many Americans will be morally outraged, and rightly so. But perhaps some brave official will take a lesson from Col. Mathieu and dare to turn the tables: Should the United States stay in Iraq? If your answer is still yes, then you must accept all the consequences.

Naomi Klein reported from Iraq for Harper's. She is the author of "No Logo" (Picador, 2002) and is writing a book on the ways capitalism exploits disaster.

© 2005 LA Times

 

Envie um comentário sobre este artigo