Cada canto do mundo tem uma luz particular. Matisse, quando visitou Nova York, prognosticou que naquela cidade iriam morar muitos artistas por causa da qualidade da luz nela existente.

Essa coisa de luz é um caso muito sério para a sensibilidade de um artista. É como o som. São ambos muito evocativos.

Há dias aqui em Austin, sobretudo ao entardecer à beira do lago rodeado de pedras calcárias, baixa uma luz que me remete imediatamente à Grécia ou ao Oriente Médio, quiçá. Sinto como se por lá, eu tivesse vivido numa prévia encarnação. Acometem-me sensações, quase lembranças, resgatadas de várias camadas de mim. Pulsações das cordas do meu DNA. Imagino que esta deve ser como a luz em Jerusalém, Damasco ou Nazaré. (Austin fica na mesma latitude que o Egito!) Fico ultra nostálgica quando a sinto. Sim, sentir seria mais exato do que ver ou observar.

Hoje, regando o meu jardim, num átimo de segundo, flagrei-me lembrando dos meus tempos de Arpoador, a praia favorita da minha infância. Quem me transportou para lá nesta manhã foi a luz fresca da primavera quase bronzeada em verão, faiscando na água correndo vala abaixo. Nela, boiavam cintilantes as memórias dos mergulhos, dos jacarés e das nadadas pueris.

Se nos dedicássemos mais ao enriquecimento das imagens dos nossos arquivos mentais, se prestássemos maior atenção ao aspecto imagético do mundo -- sobretudo aquelas visões inventadas pela arte e seus artistas -- garanto que desfrutaríamos mais refinadamente do sabor do visível que nos rodeia.

Focalizando na luz, Manet; os pontilhistas -- como Seurat --, Vermeer, George de la Tour, Turner e De Chirico, talvez sejam os nomes mais assíduos de um vasto grupo de artistas que vêm à tona quando alguém experiencia a poesia da luz do mundo.

Pois o mundo somente existe com mais realce e mais grandeza por causa da luz. Melhor dizendo, por causa do Sol. Sem ele, não há luz nem há sombra. E sem jogo de luz e sombra o mundo só ficaria mais chato. Sem relevo. Quase sem interesse. Foi a luz que ensinou aos artistas, como Da Vinci, a descobrir a cor violeta na sombra das árvores e orquestrou o concerto de semitons com que Monet registrou em suas telas a catedral de Rouen. É como diria Dante:

"La gloria de colui che tutto muove

Per l'universo penetra e risplende

In una parte più e meno altrove"

Foi ele, nosso astro rei, quem determinou a escolha de sala, na exposição que fiz no ARTPACE FOUNDATION, em San Antonio, quando ali cumpri entre maio e julho de 99 minha residência de artista. No instante que notei a qualidade da luz solar que se esvaía duma clarabóia no andar térreo, não tive dúvida: estava decidido que era com essa luz que eu iria trabalhar.

Sua presença, para mim, seria a guia mestra. Só me restava, NA OBRA, GRIFÁ-LA MíSTICA, COM TODOS OS CUIDADOS POSSÍVEIS DE UMA PEREGRINA DAS ARTES.

Houve tempos, porém, que o uso da luz natural em meu trabalho serviu para um outro tipo de discurso. Discurso um pouco mais combativo, talvez. Como foi no caso da série das "NATURES MORTES". Minha intenção com essas fotos, inspiradas nas comidas sagradas oferecidas às forças da natureza, tanto pelos Hopi e Zunis da América do Norte, quanto pelos adeptos do Candomblé no Brasil, era a de marcar um protesto irônico ao trato que hoje damos à Natureza. Creio que isso fica claro no título (elemento sempre importante em minhas obras): Nature Morte — jogo de palavras. Ironia entre o extermínio do mundo natural e o termo da Academia de Belas Artes. Termo usado para classificar um certo tipo de pintura. Pintura de motivos retomados dos romanos pelos artistas flamengos, no século XVI. Muitos desses homens de Flandres vieram às Américas com a missão de relatar em telas ao poder na Europa o que se havia descoberto no Novo Mundo. O que se poderia explorar/extrair da fartura da Natureza recém-colonizada. E nessas "Naturezas Mortas" os holandeses e belgas faziam suas reportagens. Um equivalente do que faz a CNN hoje em dia.

Como essas telas eram todas pintadas à luz natural, as fotos de minha série também foram todas tiradas sob luz variante do sol. Luz invadente pela janela da cozinha a um certo tempo do ano. Filtrada ainda pelas últimas folhas da árvore em frente. Naquele momento preciso, quando a vegetação começa a despir-se da folhagem. Época em que a Natureza começa a entrar em recesso para recuperar-se para uma nova primavera.

Mas retornando ao casamento de água e luz...

Jamais me esquecerei como, por causa dessa união, uma cidade pode se modificar tanto. Como é o caso, por exemplo, de Veneza, a Rainha do Adriático. Visitei-a duas vezes. Em duas distintas condições de luz. Uma no inverno e de outra feita no verão. Uma cidade única, dois temperamentos.

A luz sombria e fria do inverno parece reviver nela o clima de todas as intrigas sinistras da corte dos Doges, entranhadas ainda no limo de seus prédios. Mas quando a luz que ri alto se solta por entre as pontes do verão, brincando sob as velhas gôndolas, então ela parece prometer o retorno dos tempos celebrizados por Canaletto. Quando Veneza virava festa, procissão de cantares. E se a gente, nessa mesma estação, lá pro final da tarde se aventura num vaporetto a chegar até o Lido, o que lá nos invade a mente é a frase de Rimbaud: "Qu'est que c'est l’éternité? C'est le soleil qui tombe sur la mer..."

Dito isto, minha cabeça gira de volta ao Brasil, às praias onde, de criança a jovem, aprendi a sentir, sob a pele, a importância vital da natureza. Copacabana, a princesinha do mar, com a sua luz toda própria, sol suave das manhãs, névoas sonsas ao poente. Praia da primeira infância... E Ipanema, onde não só aprendi a mais do gosto de água e sol, mas onde, na juventude (anos 60), cursei a mais refinada escola de humor brasileiro. Humor encharcado de poesia e de filosofia toda própria de vir a ver o mundo. Lembro-me de um dia, em frente à rua que hoje se chama "Vinícius de Morais", (creio que se chamava Joaquim Nabuco). Estávamos, a "tchurma" toda em papo animado. Ainda na praia, bem cerca do momento do poente. A conversa voava alta, como sempre. Assunto vário. Não me lembro bem de quem lá estava. Fernanda Esteves, com certeza, Marquinhos Alencar?, Guerreiro talvez. Quem sabe Darwin Brandão, Steve Kranz ou Rui Poilaná? Eram mais de dez pessoas. Todos habitués dos encontros na areia, onde papos intermináveis emendavam-se depois em chopes no "Veloso", hoje em dia rebatizado de "Garota de Ipanema". De repente, silêncio. Nossos corpos sempre girando com o sol, para dele desfrutar até os últimos raios, a essa hora já estavam todos voltados pros Dois Irmãos. Colossos graníticos. Mega ponto-final da curva do Leblon. E então, no seio desse inesperado silêncio — que bruscamente emudeceu nossas palavras/risadas. Num acorde uníssono, jamais ensaiado ou concordado em verbo ou previamente. Todos, digo todos nós mesmo, aplaudimos bravamente. Ao Sol, que em todo seu esplendor, recolhia-se magnífico, para ir nanar ao embalo das pluriróseas ondas, por detrás da proteção dos dois formidáveis gigantes negros.

© Regina Vater, 2001

 

REFERÊNCIAS:

MATISSE

http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/matisse/

http://www.musee-matisse-nice.org/

MANET

metalab.unc.edu/wm/paint/auth/manet/

SEURAT

www.artchive.com/artchive/ftptoc/seurat_ext.html

VERMEER

www.cacr.caltech.edu/~roy/vermeer/thumb.html

TURNER

www.artcyclopedia.com/artists/

DE CHIRICO

http://www.drizzle.com/~ash/9901/imagined/chirico/

MONET

http://webpages.marshall.edu/~smith82/monet.html

ARTPACE

www.artpace.org

DANTE

http://www.ilt.columbia.edu/projects/dante/index.html

HOPI

http://www.nau.edu/~hcpo-p/

http://www.hopi.nsn.us/

http://www.ausbcomp.com/redman/hopi.htm

ZUNI

http://www.zms.org/

http://curtis-collection.com/tribe%20data/zuni.html

CANDOMBLÉ

http://sites.uol.com.br/jorixas/htmlpt/index1.html

http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/6052/

http://acaiaba.vilabol.uol.com.br/historia.html

FLEMISH PAINTERS

www.artcyclopedia.com/nationalities/Flemish.html

http://www.televisual.it/uffizi/flemish.html

VENEZA

http://www.doge.it/

CANALETTO

http://www.artcyclopedia.com/artists/canaletto.html

CANALETTO

http://sunsite.sut.ac.jp/wm/paint/auth/canaletto/

RIMBAUD

http://poetes.com/defaultbis.html

http://www.imaginet.fr/rimbaud/

COPACABANA

http://www.copacabana.com/

IPANEMA

http://www.ipanema.com/

a "revelância" da luz

"AMON/AMEN" 1999
"Nature Morte" 1987-89
"Bodegons",1998