Um modo melhor para acabar com a fome

 

 


Frances Moore Lappé e Anna Lappé
7 de junho de 2002

Tradução Imediata

Bill Gates pensa ter tido uma idéia brilhante: lutar contra a desnutrição através da fortificação dos alimentos.

O esquema, bancado com 50 milhões de dólares doados pela Gates Foundation, estimula a Proctor & Gamble, a Kraft da Philip Morris, assim como outras companhias a desenvolver vitaminas e comidas processadas enriquecidas com ferro. Daí, se facilitaria a entrada desses alimentos nos mercados do Terceiro Mundo.

Parece que Gates acredita que não temos tempo de lidar com as complexas raízes sociais e políticas da desnutrição. Mas ao optar por essa intervenção técnica de enfoque único, e dirigida de cima para baixo, Gates pode acabar danificando ainda mais as pessoas que pretende ajudar.

A estratégia dele ignora uma realidade crucial: muitas, ou talvez, a maioria das pessoas que passam mais fome no mundo são os próprios agricultores. Muitos levam uma vida miserável e mal conseguem sobreviver vendendo e comendo aquilo que plantam. Ajudar fornecedores estrangeiros a penetrar nos mercados dessas populções somente vai roubar delas o seu ganha-pão e sustento. Por exemplo, as cooperativas leiteiras da Índia — muitas das quais são dirigidas por mulheres -- seriam gravemente pressionadas para resistir ao ataque do poder de marketing da Kraft.

O método Gates também causa danos aos pobres, modificando o gosto natural em prol de comidas processadas — tipicamente, adicionando gordura, açúcar e sal, ao mesmo tempo que são removidas as tão necessárias fibras e os micronutrientes. Esse tipo de tendência em termos de regime alimentar contribui para espalhar doenças que atualmente causam sérios problemas nos países industrializados. A obesidade e as doenças decorrentes dessa dieta, incluindo o diabetes, os problemas cardíacos e o câncer estão se tornando uma verdadeira crise global. No Terceiro Mundo, os orçamentos altamente insuficientes para a saúde estão sendo desviados agora para tratar desses novos problemas, ao invés de serem aplicados para o tratamento de doenças infecciosas.

Ajudar que as empresas de processamento de alimentos penetrem no mercado também acaba levando os consumidores a depender de fornecedores estrangeiros para suas saciarem suas necessidades básicas de vida. Mas, embora seja possível que empresas como a Kraft ou a Proctor & Gamble participem do esquema de "fazer o bem" de Gates, em última análise os interesses dessas companhias divergem daqueles das populações que passam fome. Por lei, o interesse das empresas é assegurar o mais alto retorno possível para os seus acionistas — estrangeiros — e não melhorar as condições de vida das populações locais, e certamente não as condições das populações locais que passam fome e que são demasiadamente pobres para que suas necessidades sejam levadas em conta pelo mercado.

Até mesmo os pontos do esquema Gates centrados em fortificar os grãos (presumivelmente plantados a nível local), não levam em conta as lições fundamentais aprendidas com a primeira Conferência Mundial de Alimentação de Roma, onde foi declarada guerra à fome global há quase três décadas.

Naquela época, muitos ainda acreditavam que a fome poderia ser resolvida por métodos simples de produção em massa. Depois de décadas de fracassos das soluções impulsionadas pela tecnologia, uma nova sabedoria está emergindo.

Recentemente, viajamos pelos cinco continentes, testemunhando uma animadora gama de iniciativas locais que tratam das raízes complexas e entrelaçadas da desnutrição desnecessária. Não se trata de soluções mirabolantes; elas estão funcionando.

Em 1993, a quarta maior cidade do Brasil, Belo Horizonte, declarou que a alimentação é um direito de cidadania. Essa mudança de enfoque, por si só, para além das doações caritativas e além da tirania do mercado, gerou dúzias de inovações: foram disponibilizados lotes de terrenos para produtores locais de alimentos orgânicos, com a condição que mantivessem os preços dentro de uma faixa acessível à população pobre; foi promovida a afixação de cartazes indicando onde poderiam ser encontrados os melhores preços para mais de 40 itens alimentares básicos; foi melhorado o valor nutritivo dos almoços escolares, substituindo-se as comidas processadas por alimentos orgânicos locais. A municipalidade também tentou inocular os moradores recém-chegados contra a propaganda de alimentos de corporações globais (incluindo provavelmente aquelas mesmas companhias do esquema Gates), educando o público a respeito do valor de se manter um regime alimentar íntegro e saudável, baseado nos produtos das plantações do interior da região.

No outro lado do mundo, no Quênia, mulheres do Green Belt Movement — uma campanha anti-desertificação que já promoveu a plantação de 20 milhões de árvores — agora estão exigindo safras de alimentos tradicionais. Elas estão criando pomares orgânicos nas residências plantando exatamente as frutas e os legumes que fornecem os nutrientes que o esquema de fortificação Gates procura suprir.

Atualmente, um promissor movimento internacional de comércio justo baseado em reciprocidade, também tenta lidar com o problema da fraqueza que deixa as pessoas desnutridas, em primeiro lugar. Produtores do Terceiro Mundo podem vender seus produtos de livre-troca, tais como o café, certificado pela Transfair USA, sediada em Oakland, ajudando a garantir o sustento de algumas das populações mais pobres do mundo.

Milhares de tentativas inovadoras, muitas das quais impulsionadas pelos cidadãos, continuam a emergir em cada continente. Essas tentativas têm tido sucesso porque lidam com as causas reais da desnutrição — a concentração do poder econômico e político que impede as pessoas de perseguirem seus interesses e de construir economias locais vibrantes e sustentáveis, responsáveis pelas necessidades locais.

Imaginem só o que poderia acontecer se Bill Gates escolhesse, ao invés de fortificar os alimentos das corporações, usar seus 50 milhões de dólares para fortificar esforços como esses, estimulando o cruzamento fecundo e a réplica dessas iniciativas em sociedades diferentes. Com deficiências nutricionais afligindo profundamente a vida de pelo menos dois bilhões de pessoas, não podemos nos dar ao luxo de colocar em prática estratégias mal planejadas que causarão mais danos, ao invés de ajudar.

Frances Moore Lappé e Anna Lappé são as autoras de "Hope's Edge: The Next Diet for a Small Planet" (No limite da esperança: a próxima dieta para um pequeno planeta") www.dietforasmallplanet.com

 

A Better Way to Feed the Hungry

by Frances Moore Lappé and Anna Lappé

June 07, 2002

Bill Gates thinks he's got a brilliant idea: fighting malnutrition abroad by fortifying food.

The scheme, backed with $50 million from the Gates Foundation, in part encourages Proctor & Gamble, Philip Morris' Kraft, and other companies to develop vitamin and iron-fortified processed foods. It then facilitates their entry into Third World markets.

Gates seems to believe we don't have time to address the complex social and political roots of malnutrition. But in opting for this single-focus, top-down, technical intervention, Gates can end up hurting the very people he wants to help.

His strategy ignores a crucial reality: Many, if not most, of the hungriest people in the world are themselves farmers. They eke out a living by selling what they grow, and eating it. Helping foreign food purveyors penetrate their markets will only further rob them of livelihood. For example, India's dairy cooperatives -- many run by poor women -- would be hard-pressed to withstand the onslaught of Kraft's marketing power.

The Gates approach also hurts the poor if it shifts tastes toward processed foods -- typically adding fat, sugar, and salt while removing needed fiber and micronutrients. This diet trend already contributes to the spread of diseases currently burdening the industrial world. Obesity and diet-related diseases including diabetes, heart disease, and cancer are becoming a global crisis. In the Third World, grossly insufficient health care budgets are now being diverted to treat these conditions, and away from treating deadly infectious diseases.

Aiding market penetration by global food processing companies also ends up making consumers dependent on foreign suppliers for life's essentials. But while corporations such as Kraft or Proctor & Gamble might well participate in Gates' do-good scheme, ultimately their interests diverge from those of the hungry. By law, theirs is assuring the highest return to their shareholders -- foreigners -- not the improved well-being of local people, and certainly not hungry local people too poor to make their needs felt in the market.

Even the piece of the Gates scheme focused on fortifying grain (presumably locally grown) misses critical lessons learned since the first World Food Conference in Rome declared war on global hunger almost three decades ago.

Then, many still believed that hunger could be solved by simple, mass-production approaches. After decades of failed, technologically-driven solutions, a new wisdom is emerging.

We recently traveled on five continents, witnessing a heartening array of local initiatives addressing the complex, interwoven roots of needless malnutrition. These are not pie-in-the-sky solutions; they are working.

In 1993 Brazil's fourth largest city, Belo Horizonte, declared food a right of citizenship. This single shift of frame -- beyond charitable hand-outs, beyond market tyranny -- unleashed dozens of innovations: Making city plots available for local, organic farmers as long as they keep prices within the reach of the poor; posting where to find the cheapest prices for over 40 food staples; enhancing nutrition in school lunches by replacing processed foods with local organic food. The city also tries to innoculate newly arrived dwellers against global corporate food advertising (probably including that of the very companies in the Gates fold) by educating them to the value of sticking with the healthy whole foods diets they grew up on in the countryside.

Across the globe in Kenya, women of the Green Belt Movement, an anti-desertification campaign that has planted 20 million trees, are now reclaiming diverse, traditional food crops. They are creating organic kitchen gardens growing precisely the fruits and vegetables that provide the nutrients Gates' fortification scheme seeks to supply.

A promising international "fair trade" movement now also addresses the powerlessness that leaves people malnourished in the first place. Third World producers can market fair trade products, such as coffee certified by Oakland-based Transfair USA, helping to ensure the livelihood of some of the world's poorest people.

Tens of thousands of such innovative efforts, many citizen driven, continue to emerge on every continent. They are succeeding because they address the real causes of malnutrition -- concentrated economic and political power that blocks people from pursuing their interests and from building vibrant, sustainable local economies, accountable to local needs.

Just imagine what might happen if Bill Gates chose not to fortify corporate foods but to use his $50 million to fortify efforts like these, encouraging their cross-fertilization and replication. With nutrient deficiencies stunting the lives of at least two billion people we can't afford ill-considered strategies that will hurt rather than help.

Frances Moore Lappé and Anna Lappé are authors of "Hope's Edge: The Next Diet for a Small Planet" www.dietforasmallplanet.com

 

 

Envie um comentário sobre este artigo