Desconstruindo o acesso ao mercado; mercado de quem, acesso de quem?

 

 


Vandana Shiva
2 de novembro 2002

Tradução Imediata

Há um novo consenso global de que as regulamentações do comércio representadas pelos acordos da OMC são injustas e precisam ser modificadas. A próxima fase de trabalho consiste em alcançar mudanças com base na justiça.

O que justiça no comércio significa é que a justiça possa governar o comércio, ao invés do comércio continuar criando maiores desigualdades e injustiças. A justiça cria o imperativo de se incluir os excluídos, aqueles que têm sido ou estão sendo excluídos de seus direitos e do acesso aos mercados, dos meios de sustento e do acesso ao processo de tomada de decisões. As raizes da pobreza se originam com a destruição das formas de sustento, a destruição dos recursos, a destruição dos mercados para os produtos resultantes do próprio trabalho, e a desvalorização do trabalho. Enquanto os modos de sustento estão sendo destruídos e os recursos estão sendo roubados das pessoas, enquanto sistemas de liberalização do comércio desvalorizam o trabalho no Terceiro Mundo, tanto na forma de desvalorização cambial quanto pela competição de mercado, a pobreza aumenta, mesmo que ocorra paralelamente um crescimento da economia.

A globalização e o livre comércio aumentam a pobreza no Terceiro Mundo a cada um desses níveis. Os TRIPs (Trade-Related Intellectual Property Rights – Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio) roubam os pobres de sua biodiversidade, seu conhecimento, suas sementes, transformando-as em monopólio corporativo da indústria biotecnológica.

Um recurso de custo zero que pertence coletivamente às comunidades agrícolas é transformado em um insumo de altíssimo custo a ser comprado anualmente porque conta com cobertura dos direitos de propriedade intelectual, os quais tornam um crime estocar sementes, e compartilhar o conhecimento. O GATS (General Agreement on Trade and Services – Acordo Geral em Comércio e Serviços) ameaça roubar dos pobres nas zonas rurais o acesso à água, como já aconteceu com a privatização da água em Orissa, financiada pela DFID. Os custos da água para irrigação verificaram um aumento de 10 vezes, como fruto da privatização. A privatização está destruindo as formas de sustento dos pobres. Em Haryana, 63 agricultores foram assassinados durante manifestações contra a privatização da água e da eletricidade.

A liberalização do comércio está destruindo os mercados locais, como por exemplo quando inunda com bens agrícolas subsidiados e, portanto, artificialmente baratos os mercados da Índia, depois da remoção das QRs (Restrições Quantitativas), depois de uma disputa com a OMC.

A justiça comercial deve, portanto, defender os direitos aos recursos naturais dos pobres e modificar TRIPs e GATS, excluindo a biodiversidade, os recursos genéticos e as sementes da possibilidade de serem patenteados, e a água da privatização e do processo de torná-la mera mercadoria.

A justiça comercial também requer que os países do Terceiro mundo restrinjam suas importações (introduzindo QRs) para proteger os mercados domésticos, dos quais dependem as formas de sustento dos pobres.

Essas questões dos direitos relativos aos recursos naturais e da restrição ao acesso ao mercado para os mercados do Sul são princípios e objetivos comuns do movimento de justiça comercial.

A confusão e incerteza reside na área do acesso aos mercados do Norte. Especificamente, é isso que se propõe, enquanto a oferta do mercado rico acessa o pobre. Contudo, essa proposição superficial e mecânica esconde e torna invisível os processos desencadeados nas vidas dos pobres, quando a lógica do "acesso ao mercado" começa a transformar recursos, propriedade e uso, padrões de comércio e de marketing, e direitos e rendimentos.

"Acesso ao mercado" é, por si só, uma frase vaga e confusa. Ela não esclarece "que mercados" e "acesso da parte de quem".

Os mercados podem ser locais, nacionais e internacionais. O acesso dos produtores aos mercados locais e nacionais implica regulamentação, e não liberalização do comércio. Por exemplo, através das políticas criadas na Índia depois da independência, o acesso aos mercados domésticos para os agricultores e tecelões levou a um crescimento na agricultura e no setor têxtil. Reverteu a pobreza dos camponeses e tecelões que ocorreu no período colonial.

Garantir o acesso ao mercado doméstico significou restringir as importações, assim como as exportações. No primeiro ano de liberalização do comércio, durante o qual o algodão foi exportado, os tecelões não puderam mais obter algodão a preços razoáveis, e 2 milhões de pessoas foram destituídas de sua forma de subsistência, em apenas um ano. O acesso ao mercado doméstico, portanto, requer, com frequência que seja impedido o acesso ao mercado internacional, para garantir que a matéria prima e os mercados que geram empregos estejam garantidos. Dessa forma, não é suficiente falar-se de "acesso ao mercado", mas elaborar de que mercado se trata, e também avaliar o impacto do mercado internacional nos mercados domésticos para categorizar.

É necessário também categorizar "acesso da parte de quem". Em um mundo globalizado, onde as corporações globais produzem no Sul ou exportam do Sul, meramente dizer-se "acesso ao mercado para o Sul" poderia acabar intensificando os sistemas de comércio injustos e desiguais, os quais estão sendo gerados pelo comando corporativo. Um exemplo são as exportações de alimentos da Índia, sob a liberalização do comércio.

Enquanto as condições impostas pelo comércio global e pelas instituições financeiras estão impedindo que o governo ajude os pobres a terem acesso a alimentos adequados e nutritivos, elas estão promovendo um desvio dos subsídios, das pessoas para as corporações. Enquanto as pessoas foram obrigadas a comprar trigo e arroz a 11,30 rupias por quilo, em consequência da retirada dos subsídios, as coporações expotadoras, como a Cargill, estão obtendo trigo e arroz a preços altamente subsidiados. Utilizando o superávit artificialmente criado como justificativa para as exportações, o governo estará exportando 5 milhões de toneladas de trigo e 3 milhões de toneladas de arroz durante 2001; enquanto as pessoas pagam 7.000 rupias por tonelada de trigo, os exportadores estão obtendo o mesmo trigo a 4.300 rupias por tonelada, um subsídio de 13,5 bilhões de rupias. Enquanto as pessoas pagam 11.300 rupias por tonelada de arroz, os exportadores pagam o aroz a 5,650 rupias por tonelada, um subsídio de 60 bilhões de rupias. As exportações aumentam e o povo morre de fome. As corporações são subsidiadas, ao mesmo tempo em que os subsídios para alimentar o povo são abolidos. É assim que a globalização provoca a fome e a inanição no Terceiro Mundo.

São as empresas gigantes do comércio, como a Pepsi ou a Cargill que têm se beneficiado do fim dos alimentos subsidiados para os pobres e do redirecionamento de subsídios para a exportação. A Pepsi está exportando 100.000 toneladas de arroz da índia durante 2002, com um lucro de 12,2 milhões de rúpias, enquanto a população da índia enfrenta a gome. A Cargill exportou 1m.t. de toneladas de trigo durante o ano passado, e pleneja conseguir 20.000 m.t. para a colheita de 2002.

Obviamente, o movimento para a justiça no comércio não quer apoiar as exportações da Cargill e da Pepsi da Índia. Nem conseguiríamos alcançar a justiça no comércio se alimentos GM (geneticamente modificados) forem impostos aos agricultores do Terceiro Mundo e alimentos GM impostos aos consumidores europeus, na base do "acesso aos mercados do Sul". Depois da Conferência sobre a Alimentação de Roma, durante a qual se tentou forçar a Biotecnologia, e o único compromisso financeiro concreto assumido durante o evento foi a ajuda para introduzir OGM na agricultura do Sul, as exportações de alimentos GM do Sul poderia se tornar uma realidade dentro em breve. Hoje, a Argentina é o único país do Sul com uma ampla extensão de terras cultivadas com OGM, e os consumidors europeus podem se dirigir a fontes produtoras de alimentos não GM de outros países. Com a proliferação dos OGM, o acesso aos livres mercados implicaria que aos consumidores do Norte fosse negada a livre escolha em termos de alimentação, e aos agricultores e camponeses do Sul a negação da soberania relativamente às sementes e da soberania com relação à alimentação.

O acesso aos mercados sob o livre comércio significa a liberdade da Monsanto, não a liberdade dos povos do Sul ou do Norte. A liberdade das pessoas deve basear-se em justo comércio, não livre comércio. Precisamos, portanto, ir além dos slogans de "Acesso ao Mercado" e discriminar entreacesso ao mercado sob justo comércio e acesso ao mercado sob livre comércio, mercados domésticos e internacionais, acesso para os pequenos produtores versus corporações globais. Precisamos dar prioridade aos primeiros, já que as formas de sustento locais se fortalecem com a participação em mercados locais, enquanto os mercados para exportação aumentam o controle corporativo e destróem o trabalho local. As exportações, sob o regime de livre comércio, também transferem recursos como a terra e a água dos pobres para as corporações, aumentando a pobreza. Elas também colocam os países em competição, os uns contra os outros; diminuindo o valor dos bens, também desvalorizam e diminuem a receita do trabalho. O Terceiro Mundo continua a exportar cada vez mais e a ganhar cada vez menos. Os agricultores produzem cada vez mais e ganham cada vez menos. O acesso ao mercado sob justo comércio é a resposta para a pobreza. O acesso ao mercado sob justo comércio inclui priorizar os mercados locais e domésticos, não as exportações, inclui priorizar os pequenos produtores, garantir que os recursos como a terra, a água e a biodiversidade, os meios de produção para os pobres, continuem nas mãos deles. O acesso ao mercado sob justo comércio é, portanto, o centro do movimento para o justo comércio, e parte da resistência geral contra a agenda da globalização. O acesso ao mercado sob livre comércio aumenta o controle das corporações sob a agenda da globalização e não tem lugar numa campanha para justiça no comércio.

 Acesso ao mercado sob livre comércio

Acesso ao mercado para as corporações.

Camponeses e agricultores são deslocados para dar lugar à agricultura corporativa.

As sementes se tornam um monopólio das corporações.

A água é privatizada.

Os produtores do Terceiro Mundo são transformados em mão-de-obra prisioneira, recebendo salários injustos.

É destruída a segurança relativa à alimentação local.

Os pequenos produtores ecológicos do Norte são destruídos.

Os consumidores do Norte obtêm produtos arriscados, os pobres do Sul morrem de fome.

Acesso ao mercado sob justo comércio

Acesso ao mercado para os pequenos produtores.

Camponeses e agricultores têm segurança quanto aos recursos e às formas de sustento.

Soberania relativamente às sementes, para comunidades de agricultores.

A água é um bem de propriedade comum.

Os produtores do Terceiro Mundo continuam autônomos, recebendo preços justos.

É fortalecida a segurança quanto à alimentação local.

São fortalecidos os pequenos agricultores ecológicos do Norte.

Os consumidores do Norte obtêm alimentos seguros, os pobres do Sul têm acesso aos alimentos.

 

 

 

Deconstructing Market Access

Whose Market, Whose Access?

by Vandana Shiva

November 02, 2002

There is new global consensus that the rules of trade embodied in the W.T.O. agreements are unfair and need to be changed. The next step of work is actually achieving changes on the basis of justice.

Trade justice demands that justice should govern trade, instead of trade creating deeper inequality and injustice. Justice creates an imperative to include the excluded, those who have been or are being excluded from rights and access to natural resources, access to markets, and means of livelihood and access to decision making. The roots of poverty lie in the destruction of livelihoods, destruction of resources, destruction of markets for products of one's labour, and devaluation of labour. As livelihoods are destroyed and resources robbed from people, as systems of trade liberalization devalue the worth of labour in the Third World both by currency devaluation and by market competition, poverty deepens even as economic growth takes place.

Globalization and free trade deepen poverty in the Third World at each of these levels. TRIPs robs the poor of their biodiversity, their knowledge, their seeds and transforms these into the corporate monopoly of the biotechnology industry.

A zero cost resource that belongs collectively to farming communities is transformed into a high cost input to be bought every year because it is covered by intellectual property which makes seed saving and sharing and knowledge sharing a crime. GATS threatens to rob the rural poor of the access to water, as has already happened with the DFID financed water privatization in Orissa. Irrigation water costs have increased 10 fold as a result of privatization. Privatization is destroying the livelihoods of the poor. In Haryana, 63 farmers have been shot dead in protests against water and electricity privatization.

Trade liberalization is destroying local markets and local livelihoods, as in the case of dumping of artificially cheap subsidized agricultural commodities on markets in India after the removal of QRs following a W.T.O. dispute.

Trade justice therefore needs to defend the rights to natural resources of the poor and change TRIPs and GATS to exclude biodiversity, genetic resources and seeds from patentability and water from privatization and commodification.

Trade justice also requires that Third World countries restrict imports (introduce QRs) to protect the domestic markets on which the livelihoods of the poor depend.

These issues of natural resources rights and restricting market access to markets of the South are shared principles and objectives in the trade justice movement.

The confusion and uncertainty lies in the area of market access to markets of the North. Superficially, this is proposed as the rich giving market access to the poor. This superficial and mechanical proposition however hides and renders invisible the processes unleashed in the lives of poor people when the "market access" logic starts to transform resource ownership and use, trade and marketing patterns, and entitlements and incomes.

"Market access" by itself is a vague and confusing phrase. It does not clarify "which market" and "whose access".

Markets can be local, national and international. Access of producers to local and national markets implies regulation, not liberalization of trade. For example, by the policies created in post-independent India, the access to domestic markets for farmers and weavers led growth in agriculture and textiles. It reversed the destitution of peasants and weavers in the colonial period.

Guaranteeing domestic market access meant restricting imports as well as exports. In the first year of trade liberalization, when cotton was exported, weavers could no longer get cotton at affordable prices, and 2 million were pushed out of their livelihoods within one year. Domestic market access therefore can often require blocking international market access to ensure that the raw material and markets that generate livelihoods are ensured. It is, therefore, not enough to say "market access" but elaborate which market, and also assess the impact of international market access on domestic markets to categorize.

It is also necessary to categorize "whose access". In a globalized world, with global corporations producing in the South or exporting from the South, merely saying "market access to the South" could end up facilitating the unjust and unequal systems of trade which corporate rule is creating. An example is the food exports from India under trade liberalization.

While the conditionalities from global trade and financial institutions are preventing the government from supporting the poor to have access to adequate and nutritious food, they are promoting the diversion of subsidies from people to corporations. While people have been forced to buy wheat and rice at Rs. 11.30/Kg., because of the withdrawal of subsidies, export corporations such as Cargill are getting wheat and rice at highly subsidized prices. Using the artificially created surpluses as justification for exports the government will be exporting 5 million tonnes of wheat and 3 million tonnes of rice during 2001 while people pay Rs. 7000 per tonne for wheat, exporters are getting it at Rs. 4,300 per tonne, a subsidy of Rs. 13.5 billion. While people pay Rs. 11,300/Ton for rice, exporters are getting at Rs. 5,650 per tonne, a subsidy of Rs. 60 billion. Exports increase while people starve. Corporations are subsidized while people’s food subsidies are withdrawn. This is how globalization is causing hunger and starvation in the Third World.

It is the trading giants like Pepsi and Cargill who have benefited from withdrawal of food subsidies to the poor and redirection of subsidies for exports. Pepsi is exporting 100,000 tonnes of rice from India during 2002 with Rs. 12.2 million profits, while people in India face starvation. Cargill has exported 1m.t. tonnes of wheat during the past year, and plans to procure 20,000 m.t. during the 2002 harvest.

The trade justice movement would clearly not want to support the Cargill and Pepsi exports from India. Nor would trade justice be achieved if GMO crops were forced on Third World farmers and GMO foods forced on European consumers on the basis of "market access to the South". After the Food Summit in Rome at which the push for Biotechnology was the most conspicuous outcome, and aid for introduction of GMOs in the agriculture of the South was the only financial commitment, exports of GM foods from the South could soon be a reality. Today Argentina is the only Southern country with large acreage of GM foods, and consumers in Europe can go to non-GM sources of food from other countries. With proliferation of GM, free trade market access would imply Northern consumers being denied their food freedom while Third World peasants and farmers are denied their seed sovereignty and food sovereignty.

Free trade market access implies Monsanto freedom, not the freedom of people of the South or North. People's freedom must be based on fair trade, not free trade. We therefore need to go beyond the "Market Access" slogan and discriminate between fair trade and free trade market access, domestic and international markets, access for small producers vs global corporations. We need to give priority to the former since local livelihoods are strengthened through participation in local markets, while export markets increase corporate control while destroying local livelihoods. Exports under free trade regimes also transfer resources such as land and water from the poor to corporations, thus deepening poverty. They also put countries in competition against each other, lowering the value of commodities have devaluing labour and lowering incomes. Third World continues export more and ore and earn less and less. Farmers produce more and more and earn less and less. Fair trade market access is the answer to poverty. Fair trade market access includes prioritizing the local and domestic markets, not exports, it includes prioritizing small producers, it includes ensuring that resources such as land, water and biodiversity, the means of production for the poor, stay in their hands. Fair trade market access is therefore at the heart of the trade justice movement and part of the overall resistance to the globalization agenda. Free trade market access furthers the globalization agenda of corporate rule and does not fit into a trade justice campaign.

Free Trade Market Access

Market access for corporations.

Peasants and farmers displaced to make way for corporate farming.

Seeds become a corporate monopoly.

Water is privatized.

Third World producers transformed into captive labour paid unjust wages.

Local food security undermined.

Small ecological producers of North destroyed.

Northern consumers get hazardous and unsafe products, poor in South Starve.

Fair Trade Market Access

Market access for small producers.

Peasants and farmers have resource and livelihood security.

Seed sovereignty for farming communities.

Water is common property.

Third world producers remain autonomous, getting just and fair prices.

Local food security strengthened.

Small ecological farmers of North strengthened.

Consumers of North get safe food, poor in the South have access to food.

 

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