Uma vida sem propósitos

O darwinismo implica que a única vida eterna que temos existe na reciclagem de nossos átomos. Acho que é uma idéia reconfortante.

 

 

 


George Monbiot
The Guardian

16 de agosto de 2005

Tradução Imediata

Nem tudo está perdido na América. Quando George Bush pronunciou-se, há algumas semanas, a favor do ensino do "design inteligente" — a nova manifestação do criacionismo — a imprensa lhe deu a maior força. Os talibãs cristãos ainda não venceram.

Mas eles estão ganhando de nós. Até agora, houve tentativas de legislar o assunto em 13 estados, ou seja, acrescentar o "design inteligente" ao currículo escolar. Nos estados do Kansas, Texas e Filadélfia, o tema já está com um pé dentro. Em abril, foi inaugurado um novo "museu da história da terra", no Arkansas, o qual informa aos visitantes que "os dinossauros e os humanos coexistiram", e que os dinossauros juvenis, embora Deus tenha se esquecido de mencioná-lo, pegaram uma carona na Arca de Noé. Museus similares estão sendo construídos no Texas e em Kentucky. Cerca de 45% dos americanos, segundo uma sondagem da Gallup do ano passado, acreditam que "os seres humanos não evoluíram, mas, ao contrário, foram criados por Deus… basicamente em sua forma atual, aproximadamente 10 mil anos atrás."

E isso não só na América. No mês passado, o arcebispo católico de Viena, Cardeal Christoph Schönborn, afirmou que "qualquer sistema de pensamento que negue ou não procure explicar a incrível evidência de um design na biologia é uma ideologia, não uma ciência". Parece que ele tem o apoio do Papa. Na semana passada, o ministro da Educação da Austrália, Brendan Nelson, anunciou que: "se as escolas também quiserem apresentar aos estudantes o ‘design inteligente’, eu não tenho qualquer problema com relação a isso". No Reino Unido, o diretor de uma das novas academias patrocinadas por empresas comerciais reivindica que a evolução é meramente uma "posição de fé".

A controvérsia me fascina, em parte devido às suas similaridades com relação à disputa sobre mudança climática. Como os que negam haver uma mudança climática, os defensores do "design inteligente" selecionam cuidadosamente os dados que parecem apoiar seu caso. Eles pedem evidências, depois as ignoram, quando elas lhes são submetidas. Eles invocam uma conspiração para explicar o consenso científico, e não se sentem nem um pouco constrangidos com o próprio analfabetismo científico. Em um artigo publicado na American Chronicle na última sexta-feira, o jornalista Thomas Dawson afirmou que "todos os grupos vertebrados, dos peixes aos mamíferos, surgem [nos registros fósseis] ao mesmo tempo", e que se a evolução "fosse verdadeira, haveria fósseis de vida animal de animais específicos, sem visão, e outros com diferentes graus de desenvolvimento da vista… E tais fósseis não existem". (Os primeiros peixes e os primeiros mamíferos estão, de fato, separados por um período de cerca de 300 milhões de anos, e os registros fósseis têm mais olhos, em todos os estágios de desenvolvimento, que a CIA).

Mas o assunto também me fascina porque a seleção natural é um território estéril para os fundametalistas cultivarem. Por 146 anos, a evolução darwiniana tem sido observada de todos os ângulos. Há um imenso acúmulo de evidência — dos fósseis à genética, à observação direta — que parece apoiá-la. Se eles se concentrassem, ao contrário, nas questões que agora atacam a teoria do big ben, ou no fracasso até o presente de reconciliar a gravidade com a física quântica, ou na persistente não-aparência do ‘boson’ de Higgs e o duradouro mistério do fenômeno da massa, seria muito mais difícil confrontar os conservadores cristãos. Porque azucrinar Darwin?

Certamente, é porque, tão logo se consideram as implicações, deve-se cessar de acreditar que seja a Vida que a vida seja afetada por propósitos. Como G. Thomas Sharp, presidente da Creation Truth Foundation, admitiu ao Chicago Tribune: "Se perdermos o Gênesis como uma explicação científica e histórica legítima para o ser humano, então perdemos a validade do Cristianismo. Ponto final."

Perdemos muito mais que isso. A evolução darwiniana nos diz que somos um composto incipiente: assemblagens de moléculas complexas que — sem maiores propósitos que garantir as fontes de energia contra reivindicações concorrentes — desenvolveram a habilidade de especular. Depois de um certo número de anos, as moléculas se desagregam e voltam para de onde vieram. Ponto final.

Como jardineiro e ecologista, acho isso muito reconfortante. Gosto da idéia da reencarnação literal: que as moléculas que me compõem vão, depois que eu apodrecer, ser incorporadas a outros organismos. Pedacinhos de mim serão levados até as extremidades das árvores, vão passear sobre essas mesmas folhas como lagartas, vão caçar aquelas lagartas na forma de pássaros. Quando eu morrer, gostaria de ser enterrado de um modo que garanta que nenhuma parte de mim seja desperdiçada. Afinal de contas, aí é que poderei afirmar ter sido útil para alguma coisa.

Não é melhor isso que a horrível loteria do julgamento? Um futuro que podemos predizer não é mais reconfortante que outro empenhado nos caprichos de uma autoridade inescrutável? A morte eterna não é uma perspectiva mais feliz que a vida eterna? Os átomos que nos compõem, e que emprestamos momentaneamente da ecosfera, serão reciclados até o colapso do universo. Essa é a nossa continuidade, nossa eternidade. Porque deveríamos querer mais?

Há dois dias eu teria afirmado que a demanda por mais era universal — que cada sociedade tem ou teve sua própria história da criação e, como disse Joseph Campbell: "Será sempre uma história que muda um pouco de forma, mas que é, por incrível que pareça, constante, aquela que história que encontramos". Mas ontem li um estudo do antropólogo Daniel Everett sobre a linguagem do povo piraha, da Amazônia brasileira, publicado na última edição da Current Anthropology. Suas conclusões não poderiam ser mais incômodas, ou mais profundas.

Os pirahas, revela Everett, possuem "a mais complexa morfologia verbal de que eu tenha conhecimento [e] são as pessoas mais inteligentes, agradáveis e amantes do divertimento que eu conheço". Ainda assim, eles não têm qualquer espécie de número, nenhum termo para a quantificação (tal como: tudo, cada, a maioria, algum), nenhum termo para as cores e nem para o pretérito perfeito. Parece que eles emprestaram seus pronomes de uma outra língua, sendo que, previamente, não possuíam nenhum pronome. Eles não têm nenhuma "memória individual ou coletiva de algo prévio a uma ou duas gerações", não têm desenho nem outras artes, não têm ficção e "não têm histórias ou mitos sobre a criação".

Tudo isso, Everett acredita, pode ser explicado por uma característica única: "A cultura dos pirahas compele a comunicação a assuntos não-abstratos que ocorrem dentro da experiência imediata [de quem fala]". O que pode ser discutido, em outras palavras, é aquilo que é visto. Quando o fato deixar de ser percebido, ele deixa, pelo menos nessa esfera, de existir. Depois de se defrontar com uma curiosidade gramatical, ele concluiu que os pirahas estavam "falando de liminaridade — situações nas quais um item entra e sai dos limites da experiência deles. A excitação [deles] ao ver uma canoa passar pela curva de um rio é difícil de descrever; eles enxergam o fato quase como se o objeto viajasse para outra dimensão". Os pirahas, povo ainda vivo, olham o pardal esvoaçar para dentro e para fora do salão de festas…

 

"Feliz a lebre pela manhã", escreveu o poeta WH Auden, "porque ela não pode ler/os pensamentos ao despertar do Caçador. Feliz a folha/incapaz de predizer a queda… Mas o que deveria fazer o homem, que pode assobiar melodias de cor,/ saber ao compasso de quando a morte o arrancará, como o grito da cagarra?

"Happy the hare at morning/for she cannot read/ The Hunter's waking thoughts. Lucky the leaf/ Unable to predict the fall ... But what shall man do, who can whistle tunes by heart,/ Know to the bar when death shall cut him short, like the cry of the shearwater?"

Acredito que somos nós os felizardos. Nós, sós entre os organismos, é que percebemos a eternidade, e sabemos que o mundo prosseguirá sem nossa presença.

 

© 2005 Guardian Newspapers

Published on Tuesday, August 16, 2005 by the Guardian (UK)

A Life With No Purpose

Darwinism implies that the only eternal life we have is in the recycling of our atoms. I find that comforting

by George Monbiot

 

All is not lost in America. When George Bush came out a couple of weeks ago in favour of teaching "intelligent design" - the new manifestation of creationism - the press gave him a tremendous kicking. The Christian Taliban have not yet won.

But they are gaining on us. So far there have been legislative attempts in 13 states to have intelligent design added to the school curriculum. In Kansas, Texas and Philadelphia, it already has a foot in the door. In April a new "museum of earth history" opened in Arkansas, which instructs visitors that "dinosaurs and humans did coexist", and that juvenile dinosaurs, though God forgot to mention it, hitched a ride on Noah's Ark. Similar museums are being built in Texas and Kentucky. Some 45% of Americans, according to a Gallup poll last year, believe that "human beings did not evolve, but instead were created by God ... essentially in their current form about 10,000 years ago".

And not just in America. Last month Vienna's Catholic archbishop, Cardinal Christoph Schönborn, asserted that "any system of thought that denies or seeks to explain away the overwhelming evidence for design in biology is ideology, not science". He appears to have the support of the Pope. Last week the Australian education minister, Brendan Nelson, announced that "if schools also want to present students with intelligent design, I don't have any difficulty with that". In the UK, the headmaster of one of Tony Blair's new business-sponsored academies claims that evolution is merely a "faith position".

The controversy fascinates me, partly because of its similarity to the dispute about climate change. Like the climate-change deniers, advocates of intelligent design cherry-pick the data that appears to support their case. They ask for evidence, then ignore it when it's presented to them. They invoke a conspiracy to explain the scientific consensus, and are unembarrassed by their own scientific illiteracy. In an article published in the American Chronicle on Friday, the journalist Thomas Dawson asserted that "all of the vertebrate groups, from fish to mammals, appear [in the fossil record] at one time", and that if evolution "were true, there would be animal-life fossils of particular animals without vision and others with varying degrees of eye development ... Such fossils do not exist". (The first fish and the first mammals are in fact separated by some 300m years, and the fossil record has more eyes, in all stages of development, than the CIA).

But it also fascinates me because natural selection is such a barren field for the fundamentalists to till. For 146 years Darwinian evolution has seen off all comers. There is a massive accumulation of evidence - from the fossil record, to genetics, to direct observation - that appears to support it. Were they to concentrate instead on the questions now assailing big bang theory, or on the failure so far to reconcile gravity with quantum physics, or on the stubborn non-appearance of the Higgs boson and the abiding mystery of the phenomenon of mass, the Christian conservatives would be much harder to confront. Why pick on Darwin?

It is surely because, as soon as you consider the implications, you must cease to believe that either Life or life are affected by purpose. As G Thomas Sharp, chairman of the Creation Truth Foundation, admitted to the Chicago Tribune, "if we lose Genesis as a legitimate scientific and historical explanation for man, then we lose the validity of Christianity. Period".

We lose far more than that. Darwinian evolution tells us that we are incipient compost: assemblages of complex molecules that - for no greater purpose than to secure sources of energy against competing claims - have developed the ability to speculate. After a few score years, the molecules disaggregate and return whence they came. Period.

As a gardener and ecologist, I find this oddly comforting. I like the idea of literal reincarnation: that the molecules of which I am composed will, once I have rotted, be incorporated into other organisms. Bits of me will be pushing through the growing tips of trees, will creep over them as caterpillars, will hunt those caterpillars as birds. When I die, I'd like to be buried in a fashion which ensures that no part of me is wasted. Then I can claim to have been of some use after all.

Is this not better than the awful lottery of judgment? Is a future we can predict not more comforting than one committed to the whims of inscrutable authority? Is eternal death not a happier prospect than eternal life? The atoms of which we are composed, which we have borrowed momentarily from the ecosphere, will be recycled until the universe collapses. This is our continuity, our eternity. Why should anyone want more?

Two days ago I would have claimed that the demand for more was universal - that every society has or had its creation story and, as Joseph Campbell put it, "it will always be the one shape-shifting yet marvellously constant story that we find". But yesterday I read a study by the anthropologist Daniel Everett of the language of the Piraha people of the Brazilian Amazon, published in the latest edition of Current Anthropology. Its findings could scarcely be more disturbing, or more profound.

The Piraha, Everett reveals, possess "the most complex verbal morphology I am aware of [and] are some of the brightest, pleasantest, most fun-loving people that I know". Yet they have no numbers of any kind, no terms for quantification (such as all, each, every, most and some), no colour terms and no perfect tense. They appear to have borrowed their pronouns from another language, having previously possessed none. They have no "individual or collective memory of more than two generations past", no drawing or other art, no fiction and "no creation stories or myths".

All this, Everett believes, can be explained by a single characteristic: "Piraha culture constrains communication to non-abstract subjects which fall within the immediate experience of [the speaker]." What can be discussed, in other words, is what has been seen. When it can no longer be perceived, it ceases, in this realm at least, to exist. After struggling with one grammatical curiosity, he realised that the Piraha were "talking about liminality - situations in which an item goes in and out of the boundaries of their experience. [Their] excitement at seeing a canoe go around a river bend is hard to describe; they see this almost as travelling into another dimension". The Piraha, still living, watch the sparrow flit in and out of the banqueting hall.

"Happy the hare at morning," WH Auden wrote, "for she cannot read/ The Hunter's waking thoughts. Lucky the leaf/ Unable to predict the fall ... But what shall man do, who can whistle tunes by heart,/ Know to the bar when death shall cut him short, like the cry of the shearwater?"

It seems to me that we are the happy ones. We, alone among organisms, who perceive eternity, and know that the world will carry on without us.

© 2005 Guardian Newspapers

 

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