. Só o aforismo, a paródia e o paradoxo nos unem
por Silvio Mieli



 

 



 
   

 

Uma das cenas iniciais do filme The Edukators (2004)

 

No filme The Edukators (2004), dirigido por Hans Weingartner, há um ritual que se repete. Dois jovens ativistas escolhem casas da alta burguesia berlinense e, graças ao bloqueio dos aparatos de vigilância, invadem as mansões, mudam tudo de lugar e deixam uma mensagem grafitada: "os dias de fartura estão chegando ao fim; assinado: edukators". Em seguida, partem sem nada levar. Não se trata de uma ameaça ou uma revolta contra o sistema. A dupla de "educadores", Jan e Peter, propõe uma pedagogia baseada na construção de um contra-senso, de um absurdo, de um disparate. A ação é clara: criar uma instabilidade dos sujeitos e dos objetos. O mundo do bom-senso e do senso comum, expresso na ordem e no gosto das casas burguesas abastadas, uma vez revirado pelo avesso, se torna instável e estranho (aparelhos de som na geladeira, porcelanas chinesas no vaso sanitário, móveis empilhados, o sofá boiando na piscina…).

O ato de invadir propriedades particulares é considerado ilegal. Mas no contexto de um estado de exceção, quando os direitos estão suspensos no ar, o que fazer? Embaralhar os códigos. Criar um pensamento que passe por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as (Deleuze, 1985, p. 59). "A contestação hoje ficou um pouco mais complicada", diz Jan à amiga Jule num dos diálogos do filme. Posteriormente, através da intervenção da própria Jule, emerge um choque de gerações inevitável. The Edukators coloca frente a frente a geração 68 e os ativistas do novo milênio.

Nômades, libertários e anarquistas, de ontem e de hoje, têm em comum o fato de instalarem o paradoxo no pensamento e na vida política. O paradoxo tem uma função desautomatizadora da percepção do mundo, na medida em que transforma a permanência em puro devir. E se por um lado é tão difícil tratar historicamente os movimentos paradoxais, ao mesmo tempo podemos aproximar muitos teóricos que nunca se definiram anarquistas (Nietzsche, Foucault, Deleuze) da "máquina de guerra" anárquica contra o poder.

Inspirado pela pedagogia dos Edukators, pretende-se aqui apenas e tão somente mapear algumas reverberações paradoxais de matriz nietzscheana nas manifestações contemporâneas de midiativismo, termo assim definido por Matteo Pasquinelli:

O midiativismo não é só um fenômeno social e político, representa um laboratório de inovações e experimentações que veremos surgir na sociedade do futuro. Trata-se de um protótipo ou de uma oficina de uma nova cultura e de uma nova mentalidade: dos fóruns sociais ao hacktivismo, do orçamento participativo à economia solidária, da desobediência social à intervenção pacífica nos territórios da guerra global. É uma nova atitude, um modelo cultural, uma forma mental que consideramos central no humanismo do mundo que está por vir. Um protótipo mental que ainda é embrionário, mas carregado de potencialidades radicalmente inovadoras, que já arranharam a superfície das pirâmides imperiais do poder, dos meios de comunicação, da economia…(Pasquinelli, 2002, p. 12)

Comecemos por uma pista fornecida por Michel Foucault, em 1973, numa inusitada entrevista concedida à Revista Manchete. Foucault, em sua segunda e última visita ao Brasil, autodefinia-se um jornalista. "O que me interessa é a atualidade, o que se passa em nosso redor, o que somos, o que acontece no mundo" (Leite, 1973, p.147), declarou. Em seguida, arrematou:

A filosofia, até Nietzsche, tinha como razão de ser a eternidade. O primeiro filósofo-jornalista foi Nietzsche. Ele introduziu o hoje no campo da filosofia. Antes, o filósofo conhecia o tempo e a eternidade. Mas Nietzsche tinha uma obsessão pela atualidade. Penso que o futuro somos nós que fazemos. O futuro é a maneira como reagimos ao que se passa, é a maneira como transformamos em verdade um movimento, uma dúvida. Se nós quisermos ser mestres do nosso futuro, devemos colocar fundamentalmente a questão do hoje. Por isso, para mim, a filosofia é uma espécie de jornalismo radical. (Leite, 1973, p.147)

Ora, o projeto mais geral de Nietzsche, ensina-nos Gilles Deleuze, consiste em introduzir no universo filosófico os conceitos de sentido (a relação de alguma coisa para com a força que dela se apodera) e valor (a hierarquia de forças que se exprimem no objeto). É como se o "hoje" e a "atualidade" de que nos fala Foucault na citação acima passassem a ganhar um novo sentido e um renovado valor (ou transvalor), que só podem ser entendidos diante de uma crítica radical do jogo de forças contemporâneas. Uma filosofia, conforme Nietzsche dizia, realizada a "marteladas". Mas que tipo de jornalismo radical, ao mesmo tempo crítico e criativo, despontaria a partir das marteladas de Nietzsche?

Imediatismo

Posto que não se pode falar em jornalismo sem aludir a uma linguagem subjacente, trata-se de buscar em Nietzsche a novidade discursiva, uma nova narrativa, capaz de iluminar "a aurora de uma contracultura" (Deleuze, 1985, p.57) e de uma contrafilosofia. É exatamente isso que o filósofo Gilles Deleuze aprofunda na sua fala "Pensamento nômade", no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle (Normandia), durante o colóquio "Nietzsche hoje?", em julho de 1972.

Na tradição filosófica, a relação com o exterior sempre foi mediada e dissolvida numa interioridade (a alma, a consciência, a essência ou o conceito). Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escritura, sobre uma relação imediata com o exterior através do aforismo (sentença breve, máxima), da poesia, da paródia, da ironia e do paradoxo.

Miguel Angel de Barrenechea insiste na exaltação enfática que Deleuze faz do estilo nietzscheano:

… o aforismo é saudado como uma nova forma de escrita, uma fala radial e revolucionária, oposta às construções tradicionais da filosofia. O aforismo, para Deleuze, possui um caráter absolutamente inovador, colocando em xeque todos os meios de expressão anteriores. (Barrenechea, 200, p.105)

Para Gilles Deleuze, conectar o pensamento ao exterior é o que os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política. Não basta falar do exterior para conectar o pensamento diretamente e imediatamente ao exterior. Os textos de Nietzsche são atravessados por um movimento que vem de fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro exterior e, o que é mais importante, abre-se para as pluralidades e diferenças deste exterior. "Friedrich Nietzsche afirmou que o habitat dos grandes problemas é a rua", anotou certa vez o escritor Oswald de Andrade. (Oswald de Andrade, apud Borges).

Este imediatismo Nietzscheano, inspirou, por exemplo, Hakim Bey, o codinome de Peter Lamborn Wilson, anarquista americano estudioso do sufismo (corrente mística do Islã). Bey é o teórico das Zonas Temporárias Autônomas, que seriam áreas ou dimensões sociais liberadas temporariamente do capitalismo globalitário. O conceito de TAZ, assim como as noções de "imediatismo", tiveram uma influência fundamental nas experiências telemáticas alternativas. Bey chegou a escrever um manifesto do imediatismo. Em seu oitavo item lê-se o seguinte:

Computadores, vídeo, rádio, impressoras, sintetizadores, máquinas de fax, gravadores de fita, fotocopiadoras - essas coisas representam bons brinquendos, mas terríveis vícios. Finalmente, nós percebemos que não podemos alcançar e tocar em ninguém que não esteja presente em carne e osso. Essas mídias podem ser úteis a nossa arte, mas elas não devem nos possuir, tampouco devem permanecer "entre", mediando ou nos separando de nosso "eu" anímico/animal. Nós queremos o controle de nossa mídia, não sermos controlados por ela. Gostaríamos de lembrar de certa arte marcial que acentua a idéia de que o corpo é, em si mesmo, a menos mediada de todas as mídias. (BEY, imediatismo, site Sabotagem/Contra-Cultura)

A atualização do jornalismo radical, imediato e aforístico de Nietzsche, nos compele a vivenciar a comunicação como uma prática ativa, ao invés de sermos meros receptores de informação. Ensina também que os meios de comunicação não são apenas MEIOS, mas campos de batalhas políticas, teatros do imaginário coletivo, espelhos de projeções da estrutura e da construção social (Pasquinelli, 2002, p.15). Não basta olhar para os meios pelo viés instrumental, assim como não é mais possível desconsiderar o fato de que estamos imersos numa midiascape (paisagem midiática).

Jogo de forças

Seguindo as características que Gilles Deleuze dá aos aforismos nietzscheanos, temos uma mapa, não para analisar ou categorizar a contracultura dos anos 60 ou 70 (que tem mais a ver com Freud e Marx), mas para continuar a estudar as ações paradoxais na esfera comunicacional, que emergem na era pós-Seattle (1999), e que parecem estabelecer um diálogo muito rico com Nietzsche.

Ora, num mundo onde, como bem demonstra Toni Negri, não existe mais o fora, Nietzsche sugere tratar o aforismo, esta centelha de linguagem, como um fenômeno à espera de novas forças que venham "subjugá-lo", ou fazê-lo funcionar, ou então fazê-lo explodir (Deleuze, 1985, p.62). Já sabemos que cada inovação estética, tecnológica e comunicacional é imediatamente absorvida pelo sistema. Mas, diante desse mar revolto de forças, é preciso mais do que nunca saber avaliar, pesar, conferir sentidos e significados. Talvez seja exatamente este o método nietzscheano,

… que faz do texto de Nietzsche não mais alguma coisa a respeito da qual seria preciso se perguntar "é fascista, é burguês, é revolucionário em si?", mas um campo de exterioridade onde se defrontam forças fascistas, burguesas e revolucionárias. E a resposta conforme ao método seria: encontre a força revolucionária (Quem é além-do-homem?)!. (Deleuze, 1985, p.62).

É preciso considerar este jogo de forças a partir da noção de sentido em Nietzsche:

Nós nunca encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico), se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou que nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência (imagem), nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra o seu sentido numa força atual. A inteira filosofia é uma sintomatologia e uma semiologia. As ciências são um sistema sintomatológico e semiológico. (Deleuze, 1997, p.3)

Leia-se o seguinte aforismo de Nietzsche:

Não se baseia precisamente a divindade em haver deuses, e não deus?. (Nietzsche, 1977, p. 139).

A interpretação que Deleuze faz do aforismo merece destaque. Para ele, os deuses morreram, mas na verdade eles morreram de rir, quando ouviram um Deus falar que ele era o único. E a morte deste Deus que se dizia o único é, também, um evento plural: a morte de Deus é um acontecimento onde cada sentido é múltiplo. É PORQUE "NIETZSCHE NÃO ACREDITA NOS GRANDES EVENTOS RUIDOSOS, MAS NA PLURALIDADE SILENCIOSA DE SENTIDOS DE CADA EVENTO".

Se ouvirmos outro intérprete afiado de Nietzsche, o filósofo italiano Gianni Vattimo, perceberemos que, Nietzsche e Heidegger nos fizeram ver que devemos transformar a idéia de que a verdade não é objetiva numa disciplina do diálogo. Não existem princípios absolutos, objetivos, mas apenas opiniões, pontos de vista, forças. Se eu sei que a verdade não é definitiva, procuro um acordo, procuro escutar os outros, corrigir-me (Pinto, 2002).

Intensidades (qualidades)

A intensidade não remete nem a significados que seriam como a representação das coisas, nem a significantes que seriam como a representação das palavras. O aforisma é intenso porque nasce do fluxo vital de um indivíduo, concreto, encarnado, de um nome próprio, de um corpo próprio. Ele está presente em todas as manifestações midiativistas que clamam por um processo de reapropriação do corpo, do corpo público, do corpo social.

O aforismo procura intensidades e, por sua vez, intensidades são diferenças. Este conceito próprio da diferença Deleuze buscará mergulhando profundamente nas teorias do Eterno Retorno e da Vontade de Potência de Nietzsche. Pensando em termos de invenção e não de origem do conhecimento, entendendo sua relação de poder com as coisas a conhecer, tirando o papel de protagonista do sujeito do conhecimento, enfim, Nietzsche nos aproxima de uma forma de esquecimento revolucionária para a tradição da filosofia ocidental. É uma quebra desconcertante em relação ao que vinha sendo dogmatizado, ensinado, demonstrado, exemplificado e incutido: de que o conhecimento é semelhante à natureza humana e ao mundo, de que o mundo é perfeito, ordenado e imita o homem, de que tudo é belo, harmônico e tem uma origem que, invariavelmente, culminava no "E o Verbo era Deus..." Mas Nietzsche retira a figura deste Deus único (início e fim de tudo) do mundo, bem como a busca angustiada das origens das coisas; quer esquecer ambos os caminhos, já que representam um fardo pesado demais para se carregar. Seu mundo está além da moral, além do bem e do mal. Seu Universo é "um processo circular do todo", é a "Teoria do Eterno Retorno". Nesse anel, nesse círculo fechado que seria o universo, a quantidade de força existente seria determinada. Nele tudo é eterno, nada veio a ser. Diferentemente de outros cursos circulares, o do universo é uma lei originária onde os acontecimentos se repetem:

"Seja qual for o estado que esse mundo possa alcançar, �"ele tem de tê-lo abraçado, e não uma vez, mas inúmeras "vezes...Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, ""será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará ""outra vez, um grande minuto de tempo no intervalo, "até que todas as condições, a partir das quais vieste a "ser, se reunam outra vez no curso circular do ""mundo...Esse anel, em que és um grão, resplandece ""sempre outra vez. E, em cada anel da existência ""humana,...emerge o mais poderoso dos pensamentos, o ""pensamento do eterno retorno de todas as coisas: é ""cada vez, para a humanidade, a hora do meio-dia. (Nietzsche, 1978, aforismo 25, p. 389-90)

Decorre da Teoria do Eterno Retorno a Teoria da Vontade e Potência. Uma vontade mais forte leva a melhor; não há nenhum projeto anterior. É a teoria de um mundo que eternamente se cria e se destrói a si mesmo, um mundo de volúpia, sem objetivos:

"...força por toda parte...mar de forças tempestuando e ""ondulando em si próprias, eternamente mudando. (Nietzsche, 1978, aforismo 1067, p. 97)

Não há equilíbrio, nada é definitivo. Nós mesmos somos, segundo Nietzsche, essa vontade de potência, e nada mais. A leitura que Gilles Deleuze faz do Eterno Retorno nietzscheano opõe o "caos-errância" à "coerência da representação", excluindo a possível pertinência de um sujeito que se representa indefinidamente e de um objeto representado, em nome de uma eterna repetição que receptaria uma potência informal, capaz de desfazer cada representação das coisa através da diferença:

O díspar é o último elemento da repetição que se opõe à identidade da representação. O círculo do eterno retorno, o da diferença e da repetição (que desfaz o do idêntico e do contraditório), é um círculo tortuoso que só diz o Mesmo daquilo que difere. (DELEUZE, 1988, p.108)

Deleuze procurará nos despertar através do "Eterno Retorno" para toda e qualquer remoção dos entraves que mediatizam a relação entre o ser e a diferença dos fenômenos. Ao assumir a postura de que cada fenômeno é uma eterna cópia de outras cópias das quais não há uma origem, mas apenas eventos que só existem retornando, Deleuze abre-se para o simulacro como "o verdadeiro caráter ou a forma do que é "o ente" , quando o eterno retorno é a potência do ser (o informal)". A identidade, responsável pela modelação formal dos fenômenos em função de um ideal a ser representado, desfaz-se no simulacro, que longe de ser uma cópia, procurará experienciar o real a partir de uma seleção dos elementos divergentes, díspares:

Com efeito, por simulacro não devemos entender uma simples imitação, mas sobretudo o ato pelo qual a própria idéia de um modelo ou de uma posição privilegiada é contestada, revertida. O simulacro é a instância que compreende uma diferença em si, como duas séries divergentes (pelo menos) sobre as quais ele atua, toda semelhança tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existência de um original e de uma cópia. É nesta direção que é preciso procurar as condições, não mais da experiência possível, mas da experiência real (seleção, repetição, etc). É aí que encontramos a realidade vivida de um domínio sub-representativo. Se é verdade que a representação tem a identidade como elemento e um semelhante como unidade de medida, a pura presença, tal como aparece no simulacro, tem o "díspar" como unidade de medida, isto é, sempre uma diferença da diferença como elemento imediato. (Deleuze, 1988, p.124-125))

Este elogio da diferença, da intensidade e do simulacro soa hoje como um libelo contra as leis de patentes e o fundamentalismo das propriedades intelectuais.

O senso de humor e a ironia

É impossível não rir quando, no começo de The Edukators, a família chega de férias e encontra o mundo de cabeça para baixo. O humor é um exercício de dissecação da realidade tal como ela é e não como o bom senso ou o senso comum gostariam que ela fosse. No senso comum, os diferentes objetos igualizam-se "e os diferentes eus tendem a se uniformizar" (DELEUZE, 1988, p.360). Logo, o que Deleuze identifica no paradoxo como manifestação da filosofia (ao contrário do bom senso), é válido também para os efeitos paradoxais no humor:

"...o paradoxo quebra o exercício comum e leva cada " �"faculdade diante do seu próprio limite, diante de seu ""incomparável, o pensamento diante do impensável que, ""todavia, só ele pode pensar, a memória diante do ""esquecimento, que é também seu imemorial, a ""sensibilidade diante do insensível, que se confunde com ""o seu intensivo.(DELEUZE, 1988, p.365)

Um aforismo é um jorro de riso e alegria. "É preciso ler Nietzsche rindo e gargalhando, caso contrário não há leitura de Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação à Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte da nossa contracultura" (DELEUZE, 1985, p.64). Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos (é exatamente isso que faz o subvertisement e as ações de culture jamming contemporâneas). O riso em Nietzsche remete sempre ao movimento exterior dos humores e das ironias e este movimento é o das intensidades, das qualidades, das diferenças exteriores que ressoam continuamente.

Aqui é preciso compreender que o humor e a ironia se contrapõe ao peso dos valores platônicos, judaico-cristãos: valores que condenaram a vida, postulando um utópico mundo do além (as idéias ou idealismo platônico). Portanto, nunca é demais ressaltar que um dos projetos de Nietzsche é demolir o castelo metafísico, armadilha na qual, segundo Oswaldo Giacoia Junior,

Nossa alma ou espírito, nossa verdadeira essência, estaria prisioneira do nosso corpo. Os sentidos induziriam nossa verdadeira essência ao erro e ao engano pelos sentidos, que nos arrastam continuamente para o planos das aparências, desviando-nos do que seria a nossa verdadeira destinação: a contemplação das formas puras…Todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espécie de recordação do que outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre, contempláramos do verdadeiro e divino mundo das idéias. Um espírito, ou razão pura, e um bem em si constituem as referências metafísicas que dão sustentação tanto ao conhecimento científico quanto às ações morais do ser humano no mundo. (Giacoia Junior, 2000, p.23)

 

Máquina de guerra nomádica e intempestiva

Num trabalho recém-lançado, Viviane Mosé mostra como a nova política que nasce com Nietzsche passa por uma transvaloração da linguagem. Ou seja, a desautorização da linguagem, a desconstrução da lógica da identidade (leis e gramática) e o investimento numa relação afirmativa com os signos a partir de um novo campo de forças interpretativo.

Dentro deste contexto insere-se a questão do aforisma nomádico. Deleuze intuia que o problema político seria o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na organização despótica e burocrática do partido e do aparelho de Estado: uma máquina de guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o exterior, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Nesse sentido, a nova política que começa com Nietzsche inaugura uma máquina de guerra móvel (nomádica e intempestiva). François Zourabichvili dá uma interpretação prática ao conceito deleuziano de máquina de guerra:

…em lugar de depositar uma fé intacta e não crítica na revolução, ou de convidar abstratamente para uma "terceira via" revolucionária ou reformista, ela permite precisar as condições de uma política revolucionária não-bolchevique, sem organização de partido, que disporia ao mesmo tempo de uma ferramenta de análise para fazer face ao perigo de deriva "fascista" próprio das linhas de fuga coletivas. (Zourabichvili, 2004, p.66)

Aqui as linhas de fuga nietzcheanas e anarquistas se encontram. Os aforismos nômades são aqueles que escapam aos códigos (os marginais, os excluídos, os pensadores malditos). O nômade não é necessariamente aquele que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar (a internet que o diga), viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes, ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos (Deleuze, 1985, p.66).

Para quem ainda não viu The edukators fica um aviso. No confronto entre a geração 68 e os ativistas do novo milênio não jogue todas as fichas na alienação da juventude contemporânea.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARRENECHEA, Miguel Angel de. "Pensamento nômade": a leitura deleuziana do aforismo de Nietzsche in Nietzsche e Deleuze; intensidade e Paixão. Daniel Lins, Sylvio de Sousa Gadelha Costa e Alexandre Veras organizadores. Rio de janeiro, Ed.Relume Dumará, 2000.

BEY, HAKIM. Imediatismo, in site Sabotagem/Contra-Cultura:

http://www.inventati.org/sabotagem/database/article.php?id_article=208

BORGES, FERNANDA CARLOS. "A Vontade de Mudança e o Medo da Queda", in http://www.sinte.com.br/modules.php?name=Content&pa=showpage&pid=26&page=1

DELEUZE, Gilles. Nietzsche hoje?; colóquio de Cerisy; Org,Scarlett Marton. São Paulo. Editora Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1988.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris, Quadrige/PUF, 1997.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo, Publifolha, 2000.

LEITE, Ricardo Gomes. "O mundo é um grande hospício", in Revista Manchete, número 1104, de 16/06/73.

MOSÉ, Viviana. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Jneiro, Civilização brasileira, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo, Hemus, 1977.

NIETZSCHE, Friedrich. "Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno", in Os Pensadores. 2a ed., São Paulo, Editora Abril, 1978, 25, pp.389-90.

PASQUINELI, Matteo (org). Media Activism; strategie e pratiche della comunicazione indipendente/mappa internazionale e manuale d¢ uso. Roma, Derive Approdi, 2002. Para fazer download da versão original: http://www.rekombinant.org/media-activism/

PINTO, Manuel da Costa. "O niilismo como resistência", in Folha de S.Paulo, Caderno Mais, domingo, 02 de junho de 2002.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

<devir> info@imediata.com

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