October 28, 2003

DESCOLAMENTO DE ROTINA

Que tal respirarmos fundo, e pensarmos antes, durante e depois de falar, evitando o uso contínuo-letal de clichés, de frases feitas, de lugares-comuns? Que tal introduzirmos pequenas e criativas variações nas mesmices e marasmos nauseantes repetidos e reproduzidos infinitamente? Que tal nos dissociarmos da pasmaceira geral, da apatia estética, da prática voluntária e conformista da propagação de tiques neurolinguísticos? Que tal nos recusarmos a entuchar a mesma coisa em todo e qualquer tipo de comunicação, como se fôssemos clones balbuciando as mesmas senhas estressadas da linguagem publicitária e da televisão… da teleaudição, e nos recusarmos de ser mais uma leva de linguamatricidas? Que tal pararmos de atrofiar o pensamento, fato inevitável quando empobrecemos e esculachamos a linguagem e esbordamos nossa expressão mais autêntica contra montanhas, desertos e icebergs de sintagmas cristalizados? A solução?

SABOREARMOS vocábulos novos e antigos, reintroduzirmos expressões idiomáticas que ampliam nossa vivência e sensibilidade, criarmos novas formas de dizer, inventarmos novas palavras para falar, novos conceitos para comunicar, novas emoções para expressar, ou simplesmente, reencontrarmos o PRAZER incomparável da busca da originalidade nas formas de expressão, a ALEGRIA extraordinária de metaforizar, a LIBERDADE incondicional de nos reapropriarmos de nossa própria língua, tanto o órgão muscular atrofiado quanto o conjunto de palavras, expressões e signos que compõem o idioma, falado ou escrito, pensado ou divulgado.

Com certeza! Estarão pensando alguns, respondendo como araras amortecidas e condicionadas. O "com certeza" aniquilou o "É mesmo", o "Pois é", o "Claro", o "Óbvio", o "Seguro" o "Seguramente", o "Perfeito", o "Evidente", o "Decerto", e até mesmo o "Certamente". Que crime contra a diversidade linguística!!! Tudo reduzir-se ao "com certeza". Justamente na era em que todo o pensamento científico não passa de uma coleção de probabilidades.

Tudo bem, vou estar evitando! Responderão outros, papagaiando o novo modo de se falar. É a gerundização total da língua portuguesa. Todo mundo "vai estar fazendo", "vai estar tratando", "vai estar cuidando", "vai estar providenciando". Em que gaveta arremessaram o presente do indicativo? E o futuro simples, onde acabou? Ninguém mais "vai fazer", ou "fará", ninguém mais "vai tratar" ou "tratará", ninguém mais "vai cuidar" ou "cuidará". Tudo no gerúndio. O gerúndio para tudo. Mais um produto voluntariamente importado do inglês, provavelmente, e dos que propõem o "livre mercado de consumo" das palavras, mas que na realidade, nos condicionam e colonizam a própria sintaxe. Quantos tradutores desprovidos e mambembes traduziriam, por exemplo, o título "Speaking English" em "Falando Inglês", ao invés de "Como falar inglês"…

Fala sério! Estarão gaguejando sem convicção outros. Tudo tem que vir acompanhado do prefixo ou sufixo "Fala sério", dito com indiferença, negligência e desleixo. Como nos sempre-iguais comerciais ou nos rituais chatíssimos dos desfiles de moda. O interesse profundo, a discussão apaixonada e a elaboração das emoções em discurso racional se desfazendo, sendo diluídos rapidamente pela insistência niilista da publicidade, pelo vazio abismal despejado pela televisão, onde se ri de qualquer tentativa de aprofundamento, onde se escarnece de qualquer pessoa ou discurso que procure refletir, questionar, indagar, informar, onde se zomba de quem quer que se recuse a sucumbir ao rebolado da "dança da garrafa". Fala sério! Dito principalmente por aqueles que se preocupam em demonstrar que são mais cultos do que realmente são e que têm mais repertório do que efetivamente têm.

Engraçado mas nada paradoxal, o ibope que os metidos a cagaregras- gramaticais midiáticos têm alcançado. Ao invés de divulgarem as pessoas, as instituições e os exemplos que permitem resgatar o que há de bom na cultura e na língua, que permitem articular uma resistência cultural ativa e combativa mas não por isso menos informativa, divertida e recreativa, ao invés de apresentarem as situações que permitem ampliar os pontos de vista pelo vocabulário e desenvolver a questão da língua… O que é que fazem? Ajudam a propagar a MONOCULTURA da televisão e da publicidade. Extraem seus mesquinhos exemplos da linguagem já pobre, deturpada e enviesada da própria televisão e publicidade, das mais vis campanhas de propaganda que já estão de longa data sedimentadas num vocabulário ínfimo e infame… e não da boa literatura, da comunicação de qualidade. Ganham seus nada modestos honorários em programas sobre "como aplicar as regrinhas", mantendo fielmente a viga mestra da função publicitária: a de gerar frustrações, de empobrecer ulteriormente o universo do VERBO, de menosprezar as pessoas que cometem errinhos de regência ou concordância, de ridicularizar e escarnecer os cartazes das periferias, de menosprezar e degradar as pessoas que escreveram "errado", mesmo quando elas se esforçaram para acertar. Se a expressão verbal revela tudo da pessoa, a ansiedade e a exaustão de se falar corretamente deveria ser uma preocupação secundária ao desgaste, à erosão, à degradação a que submetemos ‘nossa- pátria-nossa-língua’ e à qual nós mesmos fomos e somos submetidos, nesta hecatombe da capacidade de pensar, raciocinar e, por conseguinte, falar.

E já que falamos no idioma inglês, já se tornou exaustivo o uso e abuso do novíssimo cliché da estação… Se contarmos quantas vezes é proferida pelo atual presidente dos EUA (para quem "subliminal" virou "sublimibal"… olha quem tem coragem de falar em erro…), seus assessores, militares, etc… a expressão "Make no mistake about it" (literalmente "não cometa nenhum erro com relação a isto", mas na realidade uma expressão quase equivalente ao nosso "Com certeza"), vemos que a pausa para respirar fundo e a premência de evitarmos blocos cimentados e "ready made" de não-comunicação não é um imperativo especificamente brasílico, mas um dever fundamental multilinguístico mundial!!! O consolo? Erra menos quem ri mais!!!

Deixarmos de usar com todo o PRAZER e a SATISFAÇÃO a incrível variedade vocabular que temos disponível só porque fomos expostos à radiação nefasta de tradutores que se esqueceram do próprio idioma e à irradiação debilitante e estressada dos que se acham donos dos dogmas gramaticais é um atentado contra a língua!

Abaixo os crimes de lesa-linguística!!!

Abaixo a apatia na comunicação!!!

Abaixo o terrorismo cultural!!!

 

Posted by Silvio at October 28, 2003 08:07 PM
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